Linhas de Afeto
O afeto que sai da gente, chega até a gente ou passa pela gente traça um caminho que é algo circular. Vai e volta. Cresce e se expande na dimensão humana de quem faz a Lua Nova ou por ela se deixa cativar.
Pensando em tudo isso, criamos o projeto Linhas de Afeto. Como o próprio nome sugere, são reflexões afetuosas transformadas em palavras que se interligam para expressar sentimentos, experiências vividas, amizades colhidas, conexões que se estabelecem por momentos ou por toda uma vida.
As colaborações chegam espontaneamente. Atendem ao desejo e ao momento de cada um.
O que queremos dizer é que o espaço é aberto para quem quiser participar! Se for o seu caso, seja bem-vindo!
Há um ano estamos em ensino remoto. São só 15 dias... mês que vem a gente volta... julho com certeza já vai ser presencial...e assim o tempo foi passando. Os professores se reinventaram para encontrar formas de chegar nas crianças, cartas, blocos de atividades, videochamadas, plataformas diversas. Nunca paramos!
Viramos digitadores, editores de vídeo, artistas e muitas outras coisas. Começamos a dar aula para a família toda, pais, irmão, cachorros, gatos. Participamos da vida íntima das famílias e dividimos com elas também um pouco da nossa. Eu, que tenho dois filhos pequenos, muitas vezes tive minha aula interrompida por um conflito entre eles, por um cocô, por um choro… e assim seguimos enfrentando o turbilhão que foi 2020. As crianças foram se adaptando como podiam a tudo isso, umas mais outras menos, nós também! A verdade é que no fundo a gente olhava para aquela loucura toda e tinha uma ideia fantasiosa de que quando o ano acabasse tudo seria diferente! Como se em um passe de mágica, na virada do dia 31 tudo fosse mudar... hoje penso que essa talvez tenha sido uma estratégia de sobrevivência. Já pensou ter enfrentado aquilo tudo sabendo que íamos completar um ano na situação que estamos agora? Talvez não tivéssemos aguentado!
Então começamos um novo ano letivo, e ainda no ensino remoto. Como receber as crianças? Como fazer a adaptação? Como vou conseguir me vincular sem estar fisicamente perto desse grupo que mal conheço? Logo eu que sou do abraço, como vou fazer isso? Foi um início de ano bastante desafiador.
Ano passado eu tentava o tempo todo criar de alguma forma o ambiente da escola presencial, com algumas falas, alguns marcos da rotina, do jeito que eu conseguia. Uma vez enquanto eu explicava a atividade de casa eu falei assim:
- Então crianças, em casa vocês vão fazer essa atividade. E um aluno me interrompeu:
- Jô, não faz sentido você falar isso...atividade de sala, atividade de casa...a gente já está em casa. A gente tá em casa agora. Toda atividade é de casa.
E então, meio como Pollyanna, eu deixava claro para mim e para eles o meu jogo do contente:
- Você tá em casa? Eu não! Eu estou na Lua Nova! Só vou para casa quando acabar aqui! Enquanto eu estou aqui com vocês eu estou na Lua Nova.
E eles ficaram um tempo tentando me convencer que isso não era verdade. Trouxeram vários fatos para contestar aquela informação: meus filhos que apareciam no meio da aula, o meu cenário de fundo, a casa deles... e eu ali firme no meu faz de conta! Tão firme, que aos poucos alguns deles resolveram brincar também! Até engarrafamento a gente pegava as vezes pra chegar na aula.
E 2021 chegou, e um novo faz de conta começava. Dessa vez, percebi que seria mais desafiador essa brincadeira. Já tinha muito tempo sem contato físico com a escola, esse grupo não me conhecia pessoalmente como professora deles. A semana de adaptação aconteceu com muitas brincadeiras e conversas! Eles chegaram desejando interação, isso ajudou nesse processo. Fizemos um baile de carnaval, com direito a cenário, fantasia e confete (acho que até hoje tem confete pelos cantos do escritório aqui)! Foi maravilhoso!
Percebi que as crianças estavam demandando afetos, memórias relacionadas à escola, e momentos de cuidado. Estava ainda muito confuso na minha cabeça como fazer isso, até que uma mãe me deu a dica: trazer para o remoto coisas que aconteciam no presencial, como o baile de carnaval por exemplo! Era isso. O que do presencial podíamos trazer? História com pipoca, lanche coletivo, brincadeiras... fui colocando essa situações na nossa rotina. Então, numa reunião surgiu a ideia do sino para voltar do intervalo! Ah, quantas memórias afetivas o sino tinha! Antes de acabar a reunião eu já tinha encomendado um sino no mercado livre (ansiosa eu? Imagina).
No intervalo, tenho incentivado que as crianças saiam da tela, levantem, conversem com alguém em casa, façam um lanche, e falo:
- Oh, vou fechar a sala, viu? (como fazíamos na escola, e hoje uma criança disse para outra: a sala tá fechada! Só quando tocar o sino! rs).
No dia seguinte à reunião do sino, ainda sem o sino oficial, improvisei usando um som da internet. Com a câmera fechada, abri o microfone e liguei o som. Deveria ter filmado a reação de algumas crianças... rapidamente elas identificaram e logo uma gritou:
- O sino!.
Agora tenho um ajudante na aula, que adora tocar o sino, e sempre toca na volta dos intervalos. Outro dia uma criança disse:
-Eu gosto de ouvir o sino!. Não é só o sino, é lembrar de Carlos, é lembrar do momento do parque, é se conectar com essas vivências.
Mais do que nunca precisamos embarcar no faz de conta para ajudar as crianças a passarem por isso de maneira mais saudável. Assisti a um vídeo do psicólogo Alessandro Marimpietri em que ele falava que a escola antes de tudo tem de ser lugar promotor de saúde! É isso! Neste momento, mais do que nunca, não é só investir no pedagógico, é também cuidar de outros aspectos.
Preciso confessar uma coisa antes de terminar, esse faz de conta não é só para eles, é pra mim também! Ah, tá bom...é muito pra mim também!
Joana Trigo é professora
Querida Joana,
Seu registro me emociona porque a delicadeza de nutrir a alegria, a esperança, em tempos tão desafiadores, é uma benção!
A fantasia é uma porta que abre possibilidades para nossos pequenos elaborarem contextos e realidades necessárias a serem melhor assimiladas. O jogo do faz de conta nos coloca em um estado que clarifica e acalma nossas inquietações, assim como quando assistimos um bom filme, lemos um livro bacana ou apreciamos as produções artísticas, não é verdade?
A sua condução do cotidiano de sala de aula dá contornos de afeto e amorosidade. Penso que as crianças, seus pais e você mesma atravessam dias mais gratificados com esta experiência, porque tornamos-nos aquilo que fazemos no cotidiano, como nos diz Jorge Larossa.
Este exercício de vida pessoal e profissional é onde nos realizamos e exercitamos nossa humanidade.
E mais: registrar, documentar sua prática cotidiana possibilita conduzí-la com mais autoria e propriedade e, consequentemente, nos faz realizar com autonomia o grande ofício que é Ser Professor.
Walkyria Rodamilans
Diretora Pedagógica da Escola Lua Nova
Salvador, 24 de março de 2021,
Querida Joana,
Li sua carta e fiquei completamente tocada com a inteireza das suas palavras. Sim, quem diria que aquele decreto de 15 dias se estenderia por tanto tempo, não é mesmo?
Seguimos buscando reinvenções que não fugissem dos sentidos que tanto prezamos. Seguimos dançando numa corda bamba de emoções, ora lutando contra o medo de um vírus invisível, ora guerreando com as dores visíveis que nos assolam a todo tempo. E quantas críticas pronunciadas e veladas nos foram direcionadas durante esse período. Diante de todo esforço empregado e das metamorfoses vividas, alguns ainda sugerem que estamos fazendo pouco, ou mesmo que ganhamos para trabalhar quase nada, ou ainda pior, que perdemos a importância diante da distância.
Lá atrás, quando tudo isso começou, crescia vida dentro de mim. A felicidade por gestar esperança confrontava-se com a angústia da professora dos pequenininhos. Preciso dizer que doeu! A tal ponto que não controlei meu sentimento e me senti culpada por estar grávida. A professora não podia ser mãe? Pouco a pouco, vi o grupo que recebi em fevereiro se esvair. No horário do Zoom me arrumava, preparava os materiais, abria a sala e, por vezes, as crianças não apareciam. Encaminhava as atividades no Dojo, sugeria receitas, pensava em desafios interessantes, músicas, filmes... Me sentia a própria moça donzela esperando por uma carta como resposta. Não chegaram! Chorei! Chorei na sala de casa, chorei nas reuniões de coordenação, chorei na reunião de pais... De alguns, encontrei acolhimento, de outros, não tenho notícias até hoje.
Ficaram quatro. Com mais freqüência duas menininhas. Era esse o nosso grupo agora. E eu acostumada a cuidar de tantos, me via sendo cuidada por aquele quarteto. A cada vez que perguntavam sobre minha bebê, que se encantavam com o crescimento da barriga, ou pediam para ver as roupinhas já compradas, eu respirava fundo e acreditava. A professora pode ser mãe!
Ramone Moraes
Professora da Escola Lua Nova